O túmulo de Antero, no Cemitério Municipal de Catalão. Local de orações e devoção. |
Aproveitando o Dia de Finados convém lembrarmos da história de Antero da Costa Carvalho, o farmacêutico cruelmente assassinado em Catalão na década de 30, por motivos até hoje não explicados e que, na crença popular, devido ao martírio sofrido, tornou-se santo.
O texto abaixo é uma adaptação do artigo "Devoção Popular em Catalão: Santo Antero", de Jaciely Soares e Márcia Pereira Silva, publicado originalmente em 2011, na MNEME – Revista de Humanidades, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A versão completa do artigo pode ser acessada em http://www.periodicos.ufrn.br/mneme/article/download/1012/968.
A cidade de Catalão no século passado foi
testemunha de um crime que não permaneceu apenas nos arquivos públicos da
cidade, mas ganhou espaço e valor na memória da sociedade. Seu enredo se dá em um
contexto de violência, hegemonia de grupos sociais ricos e de concorrência
política. Foram por esses três caminhos que a história e a repercussão da morte
de Antero passaram. Essa trajetória permitiu que sua imagem de homem fosse, a
partir da flagelação da qual fora vítima, elevada a categoria de santo popular
da cidade.
A história de Antero se inicia com sua vinda para a
cidade de Catalão na década de 1930. Não se sabe ao certo o que o trouxe à
cidade, mas segundo descrição feita pelo jornal “Diário de Catalão” (2009)
através de relatos colhidos junto à população local, Antero era farmacêutico
prático, – oficio comum para época, boa parte das pessoas que exerciam tal
prática, teriam adquirido por meio de experiências cotidianas, sem, contudo,
estudarem numa instituição oficial –, era também jornalista e poeta e veio para
Catalão aos 34 anos de idade.
Segundo o escritor Cornélio Ramos (1997), Antero
chegou a Catalão por indicação de sua mulher, Amélia Nazar, natural da Síria e
ex-moradora de Catalão. Em tese sua vinda se deu por causa de alguns conflitos
com morados de Campo Alegre-GO e por problemas com a Justiça local, os quais
não se têm como especificar. Ao chegar a Catalão foi acolhido pelo grupo
situacionista. Aos poucos Antero foi conquistando espaço e confiança dos
moradores, logo a fama de bom farmacêutico cresceu dando-lhe prestígio. “Seu
nome começou a crescer passando naturalmente a empanar o brilho de outros, a
constituir uma ameaça” (Diário Dito e Feito, 2002).
No ano de 1936, a cidade de Catalão é testemunha do
assassinato de Albino Felipe do Nascimento, de 78 anos de idade. Rico
fazendeiro da região, casado pela segunda vez com uma jovem senhora, ele foi
morto em emboscada no local denominado Pedra Preta, caminho que seguia para
chegar a sua casa na fazenda. O crime abalou toda a cidade, já que, Albino era
conhecido por todos, e por não ter, segundo a fala de seu filho João Albino do
Nascimento, nenhum problema ou negócios mal resolvidos com ninguém.
Ao tratar
em seu livro sobre o assunto, Cornélio Ramos, nos diz que os instrumentos
policiais e judiciais eram frágeis para a solução do crime. Com um emaranhado
de pistas e suspeitos, os quais se perdiam no ar, haja vista, também, as
questões políticas dominantes que cada vez mais pressionavam as autoridades
legais por uma solução para o crime. O primeiro suspeito apontado como autor do
crime foi o filho de Albino Felipe, fruto de seu primeiro casamento, João
Albino. Este foi preso pelas autoridades locais, que em busca de uma confissão
o torturou por três dias, entretanto, não confessou o crime. A segunda opção
como mentor do crime recai sobre Antero.
Havia uma coisa que favorecia indicação do seu nome [Antero]: a dívida que tinha para com o fazendeiro, a liberdade com que contava para entrar e sair da estância, a amizade que devotava à família, deliberadamente deturpada por pessoas maldosas, o fato de o invejado poeta não possuir parente aqui; que se dispusesse a defendê-lo, ou posteriormente pudesse reclamar justiça, seu relacionamento com Chico Prateado, que era seu cobrador (RAMOS, 1997, p. 106).
Seguindo esse raciocínio, Ramos nos aponta outra possibilidade que justificaria
a ocorrência do crime cometido por Antero, uma possível traição da mulher de
Albino Felipe com Antero. Ambas as possibilidades constituem um emaranhado de
suposições, dúvidas e medos, que ainda giram em torno da família de Albino.
Em busca de um culpado, a família de Albino manteve
uma escolta formada por jagunços e amigos a fim de prender o criminoso. Como já
apontado, num primeiro momento, o filho dele, João Albino do Nascimento fruto
do primeiro casamento foi incriminado. Posteriormente, de acordo com textos já
publicados sobre o assunto, relatos e testemunhas, o cenário do crime muda, as
acusações recaem sobre Antero. Dessa forma, ele foi preso juntamente com o
jagunço Chico Prateado, suspeito de ser executor do crime a mando de Antero.
Após certo período, os policiais não conseguiram obter do suspeito a confissão,
o que aparentemente irritou ainda mais a família de Albino, a qual almejava por
justiça, esta enfurecida tencionou fazer ‘justiça’ com as próprias mãos, e sem
nenhuma objeção do suposto criminoso, ou mesmo das autoridades locais, muitas
pessoas invadiram a cadeira e arrancaram Antero da cela.
Amarraram-lhe uma corda ao pescoço, ataram suas mãos e o levaram pelas ruas aos empurrões e pontapés. Durante a caminhada, ele levou inúmeras espetadas de faca pelo corpo. A intenção era fazê-lo sofrer bastante, num sadismo abominável (RAMOS, 1997, p. 107).
No dia 16 de agosto de
1936, Antero caiu morto após seu suplício. Percorreu parte das ruas de Catalão,
sem que alguma autoridade lhe socorresse. Sua morte foi comemorada pelos
jagunços com bebidas, acrobacias e gargalhadas. A festa varou a noite com tiros
e carreiras de cavalos pelas ruas da cidade. Caiu pela última vez no final da
rua principal, hoje denominada Vinte de Agosto, próximo a saída da cidade, em
direção à cidade de Goiandira-GO. Ao passar diante da casa do então Prefeito
Anízio Gomides, teria lhe pedido socorro, o que, obviamente, lhe foi negado. Em
meio à cena, pedia ao filho de João Albino, que também havia sido torturado
anteriormente, pois fora acusado do crime, sua presença, porque queria lhe
contar um segredo; mas o chefe dos jagunços, que comandava o sangrento crime,
não permitiu tal encontro. O mesmo jagunço acabou com sua vida numa facada
certeira no peito.
Capela de Antero. A parte interna é cheia de fotos e pedidos de bênçãos. |
É interessante notar que tal episódio nos remete,
em princípio, a dois critérios de santificação de pessoas no imaginário
popular: um primeiro, parte da própria Igreja Católica, o martírio sofrido por
Santos e Santas, que expressaram suas convicções e por isso foram alvos das
mais diversas atrocidades e mantiveram firmes em seus propósitos de castidade3
e fidelidade ao Cristo, não se sujeitando ao que a sociedade os impunha. Um
segundo critério, seria a imitação de Cristo, o que, no caso de Antero, aparece
no caminho percorrido por ele que, segundo a analogia de Ramos é uma via
crucis, tecendo narrativamente a comparação entre Antero e Cristo.
Cornélio Ramos (1997) ao tratar sobre a história da
cidade, dedica um capítulo de seu livro ao caso de Antero. Seguindo uma
perspectiva de sofrimento, morte e santificação, desenvolve uma escrita dando
como mérito final a trágica morte de Antero e sua elevação a condição de Santo
e, portanto, como realizador de milagres.
A crença geral é de que o mártir santificou-se. São diárias as orações em sua capelinha e no seu túmulo, presentemente bem cuidados por populares que contam com os dedos da mão, um por um, os culpados pelo massacre, todos eles castigados pela justiça divina (RAMOS, 1997, p. 109).
Apesar de toda a violência, o crime que teve sob
acusado Antero da Costa Carvalho, nunca foi esclarecido. O mistério continua
bailando no ar através do tempo.
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