Por Cileide Alves, no Trendr.
Durante toda a minha carreira como jornalista na cobertura política trabalhei para contar com transparência absoluta o bastidor da política no Brasil. E isso incluía jogar luz na parte obscura da atividade, no toma lá dá cá, nos interesses oligárquicos, nos negócios lícitos ou ilícitos, no descompromisso de autoridades com o sofrimento e as carências da população; no apartheid entre eleitos e seus eleitores, enfim na política como ela é.
Não por puro moralismo, esse refúgio onde se protegem aqueles, políticos ou não, que fazem indignados discursos públicos contra a moral alheia, mas atropelam a ética em recintos privados. Acreditei que tornar conhecido o modus operandi da política provocaria dois movimentos distintos: 1) bem informadas, as pessoas reagiriam contra as regras do jogo e interviriam nele; 2) os políticos se incomodariam de serem vistos encenando um teatro farsesco em palco iluminado diante de uma plateia lotada.
Minha geração de jornalistas começou a cobrir a política depois da redemocratização do país. Herdou o trauma da censura à liberdade de imprensa de colegas da geração anterior que foram obrigados a fechar os olhos ao backstage da política durante os sombrios anos da ditadura militar. Com eles, minha geração aprendeu que o brilho do sol é um forte antídoto contra as bactérias que se proliferam em ambientes fechados e escuros.
Passados mais de 30 anos da redemocratização, minha geração percebe que nada disso aconteceu. Os políticos se reinventaram, ou, melhor dizendo, adaptaram a prática política ao ambiente de luz, tal qual uma bactéria aprende a se proteger e a sobreviver a um forte combate de antibióticos. No backstage, os políticos faziam política sem povo, apesar do discurso populista — repetido por partidários da esquerda, passando pelo centro até checar à direita –, de que agiam pelo povo e com o povo.
Ao longo desses anos, o jornalismo político mostrou que não era bem assim. Posteriormente, as investigações policiais e do Ministério Público (mensalão, Lava Jato e tantas outras operações com nomes pomposos ou anônimas) completaram essa exposição. Mas o esperado, a reação da sociedade e o consequente recuo dos políticos, não ocorreram. Diferentemente, a população, sim, recuou e os políticos avançaram.
A disputa judicial do presidente Michel Temer (MDB) e do PTB para garantir a posse da deputada federal Cristiane Brasil (RJ) no Ministério do Trabalho, diante de um Brasil perplexo, reflete essa nova fase da política. Não há mais necessidade de encenação. Agora os políticos sentem-se livres para jogar o jogo que sempre jogaram às escuras.
Temer aproveita-se de sua impopularidade, aliás usa-a em suas jogadas políticas. Como é um exímio jogador, daqueles que jogam sem culpa, ele nem mais precisa fingir que se preocupa com o povo. Este não o aprova mesmo, então elimina-o da partida. Um presidente da República tem de construir sua governabilidade, mas Temer faz mais do que isso. Ele divide o poder exclusivamente com o Congresso Nacional, aliás, mais especificamente com a Câmara dos Deputados, pois até mesmo o Senado perdeu relevância em seu autoral regime de governo, o tosco semipresidencialimo.
Revoltado com o que assiste, o povo bateu-se em retirada. A população brasileira age como mero espectador deste sofrível espetáculo, abandonando a plateia da grande arena da política. Tornou-se convicta de que política não é para gente do bem e deixou o campo limpo para quem joga em nome de interesses escusos. Esse talvez seja o grande legado da era Temer, do pós-Lava Jato e do pós-impeachment de 2016: convenceu o público a desistir da política, a renunciar a seu direito de jogar, como se desliga a televisão diante de uma partida de futebol de quinta categoria ou abandona a seleção brasileira depois de uma trágica derrota por 7 a 1 em Copa do Mundo. Sem o povo, os que se utilizam da política não precisam mais fingir, como faz Temer no caso da luta judicial para empossar Cristiane Brasil.
A minha geração de jornalistas errou na cobertura da política e também contribuiu para esta realidade. Não por denunciar as irregularidades, pois isso era necessário. Errou por ter mirado apenas neste alvo, sem investir em um jornalismo que também ajudasse a construir, a empoderar as pessoas para lutarem por políticas públicas essenciais a sua vida.
O jornalismo político pós-redemocratização contribuiu com o atual moralismo exacerbado que formou pessoas revoltadas e não cidadãos conscientes. Os revoltados não mudam o mundo. A ação de ler, esbravejar e se enfurecer sacia a indignação. Depois deste gozo individual vem a paralisa: a pessoa desliga a luz da arena política e vai para casa dormir em paz. No dia seguinte repete o processo de revolta/catarse/paralisia para, aos poucos, convencer-se de que política é para os políticos profissionais. É para Temer, para Roberto Jefferson, presidente do PTB; para Jovair Arantes, líder do PTB, para citar apenas os personagens principais do embate pelo Ministério do Trabalho.
A nova geração de jornalistas — muitos deles nativos digitais e com ferramentas bem mais poderosas de apuração da informação e publicação de conteúdo — encontra-se diante do desafio de reorientar os rumos da cobertura política para, no futuro, o país trocar seus revoltados por cidadãos. A minha geração tem o que aprender com a nova e, em troca, oferece a experiência de quem, mesmo errando, construiu uma transição entre o jornalismo censurado dos anos da ditadura e o jornalismo do século 21. A eles deixa o legado da luta pela transparência das informações públicas. A sociedade precisa agora aprender o que fazer com elas.
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