Por Elder Dias.
Uma gravação incrimina o presidente da República, envolve congressistas e lança o País em mais um escândalo. Logo a seguir, surge o cenário em que o Palácio do Planalto nega qualquer culpa e passa a trabalhar para se preservar, mesmo diante das evidências: articula com deputados, oferece ministérios a partidos aliados e tenta acelerar todo o rito processual para evitar que o tempo trabalhe contra si.
Parece história recente? Parece. E até é, de fato. Mas também reconta outra trama, de 20 anos atrás. Em maio de 1997, gravações jogaram na berlinda a aprovação da emenda da reeleição na Câmara dos Deputados. Dois parlamentares, Ronivon Santiago e João Maia, confessaram ter vendido o voto a favor da reeleição por R$ 200 mil. O intermediador teria sido Sérgio Motta, então ministro das Comunicações e homem-forte do governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) – que jogava tudo para a aprovação da emenda constitucional. Pela lógica de hoje, haveria um prato cheio para a descontinuidade do mandato – o impeachment – e não por seu acréscimo por mais quatro anos.
O presidente da Câmara era um certo Michel Temer, homem da mais estrita confiança do presidente; o líder do partido governista na Câmara, um certo Aécio Neves. Para matar no nascedouro as pretensões de uma CPI – que chegou a ocorrer, mas durou apenas três horas –, o governo brindou o PMDB com duas pastas na Esplanada de Brasília, uma delas a dos Transportes, para um certo Eliseu Padilha. A outra foi o Ministério da Justiça, que caiu no colo do então senador Iris Rezende. Resultado: a “operação abafa”, como ficou conhecida a manobra, se deu no dia 16 de maio; seis dias após, a CPI era sepultada, com a renúncia de Santiago e Maia, ameaçados de cassação.
Eram outros tempos, sem Operação Lava Jato, sem Polícia Federal agindo de forma intensiva e por vezes até midiática e, principalmente, com uma Procuradoria-Geral cujo comandante durante os dois governos FHC foi Geraldo Brindeiro, conhecido também como “engavetador-geral da República – em tempo, uma das denúncias arquivadas por ele foi a da compra de votos para aprovação da emenda da reeleição.
Duas décadas depois, é impressionante a naturalidade com que a imprensa noticia as mesmas negociatas para sobrevivência do presidente flagrado em ato de prevaricação – para dizer apenas um dos crimes de responsabilidade cometidos por Michel Temer na temerária conversa noturna com o empresário espertalhão Joesley Batista.
Com todos os recursos tecnológicos, redes sociais e o olho invisível e presente do “big brother”, é incrível como a velha política teima em resistir à custa das mesmas velhas estratégias. Mais incrível ainda é que ela demonstre força para pôr em risco a maior investigação de todos os tempos sobre os altos círculos do poder. É isto: a Lava Jato pode, sim, estar no fim. Os sinais de alerta são vários.
É bem verdade que a operação nunca foi unanimidade e cometeu açodamentos, ilegalidades e exageros. A mão foi bem mais pesada contra o PT, o que seria, de certa forma, até natural, haja vista ter sido o partido que esteve no centro do poder durante mais de 13 anos. De qualquer forma, a população sedenta de uma política mais limpa, independentemente de coloração ideológica, via nela – e muitos ainda veem – uma chance de mudar o sistema.
Ocorre que o sistema é forte, antigo e resistente. E, pelas brechas deixadas pela investigação, vão surgindo as oportunidades para “estancar a sangria” e “fechar um acordo”, expressões trocadas entre o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado e Romero Jucá (PMDB-RR) na conversa pouco republicana que fez o senador se tornar o primeiro ex-ministro da era Temer.
Ao contrário dos tempos do impeachment de Dilma, a Lava Jato já não tem o apoio unânime da imprensa hegemônica e é contestada frontalmente por figuras importantes do Judiciário. O principal adversário da operação nesse Poder é Gilmar Mendes, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) que passou a entender a investigação como uma anarquia promovida por Sérgio Moro e um bando de justiceiros.
Um passo importante para o enfraquecimento da Lava Jato foi a decisão da Polícia Federal de extinguir o grupo de trabalho exclusivo da investigação em Curitiba, depois de ter um terço de seu orçamento cortado pelo governo. Porém, o maior sustentáculo que dava poder à investigação e agora tem faltado, de certa forma, é o apoio popular. Não que ele não exista: as redes sociais provam que há ainda a sensação de que não acabou e que as pessoas “querem mais”. Mas falta “rua” para canalizar esse apoio de maneira efetiva e efusiva. Os milhões que pintaram de amarelo as principais avenidas do País para tirar Dilma Rousseff (PT) da Presidência não parecem tão dispostos a usar a mesma energia contra Michel Temer, Aécio Neves e todos os demais, mesmo com provas mais robustas de corrupção e malfeitorias. O temor é o mesmo das lideranças dos antigos movimentos pró-impeachment – dos quais o Movimento Brasil Livre (MBL) foi o principal – e tem muito mais a ver com política do que com economia: usam a muleta da necessidade de estabilidade do País para evitar agir de forma eticamente coerente e necessária, mas que poderia ter como efeito colateral o reforço à candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, que está no meio do caminho entre a cadeia de Curitiba e a cadeira da Presidência.
Há vários procedimentos questionáveis, como o abuso do instituto da prisão preventiva e da delação premiada com grandes benesses, desde que seja entregue de bandeja alguém mais poderoso e mais “interessante”. Alguns chegam a dizer que as investigações tinham perdido força para as delações há tempos. O generoso acordo de delação fechado pelo procurador-geral Rodrigo Janot com a cúpula da JBS, deixando esta praticamente impune, foi claramente também um tiro no pé, em termos de credibilidade.
Mas a derrocada da Lava Jato veio pelo pecado que costuma derrubar as grandes empreitadas: a vaidade. Quando Deltan Dallagnol apresentou slides em Power Point para demonstrar que Lula era a cabeça de todo o esquema, se dizendo “convicto”, mas sem apresentar provas, já era sinal de que algo não andava bem com o ego dos envolvidos.
A Lava Jato não morreu. Ainda não. Mas, como diz a história da vizinha que não queria assustar a avó ao dar de uma vez só a notícia da morte do gato durante a viagem da velhinha, a operação “subiu no telhado”. E se tudo acabar em pizza, como há 20 anos, será apenas mais uma evidência de que, como Nação, definitivamente não sabemos fazer a coisa certa.
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