Por Cileide Alves, no Trendr
Obra Proclamação da República, de Benedito Calixto, sem a presença do povo |
O que leva um presidente da República e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) a se reunirem nos fins de semana, fora da agenda oficial de ambos, para, supostamente, discutirem a mudança do regime presidencialista para um modelo misto, chamado de semipresidencialismo? (Confira aqui a diferença entre o sistema presidencialista e o semipresidencialista.)
O último encontro entre o presidente Michel Temer (PMDB) e o ministro do STF, Gilmar Mendes, para discutir o tema — a se acreditar na versão oficial sobre a reunião sem testemunhas — aconteceu em 12 de novembro, três dias antes da comemoração da Proclamação da República. Temer e Gilmar também falaram com o presidente do Senado, Eunício de Oliveira (PMDB-CE), e ficaram de conversar com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, sobre um projeto a ser incluído na pauta do Congresso Nacional.
Só que a mudança do sistema de governo não faz parte da agenda nacional. O Brasil clama por melhoria na qualidade dos serviços públicos; pela redução da fragmentação partidária; discute as reformas trabalhista e previdenciária, o financiamento das campanhas eleitorais; defende a continuidade das investigações da Operação Lava Jato e o combate à corrupção; o fim da impunidade e do foro privilegiado para autoridades; indigna-se com a suspensão das prisões de três deputados estaduais pela Assembleia do Rio de Janeiro e a votação do Senado que derrubou a decisão do STF afastar o senador Aécio Neves etc.
Se o sistema de governo não está na agenda nacional, por que ganhou prioridade na agenda do presidente da República e de seu amigo ministro? Uma resposta óbvia é a relevância do assunto para os dois e para o grupo político no entorno deles. O discurso do presidente Michel Temer em Itu, na quarta-feira (15), em comemoração à Proclamação da República (1889) apresenta uma trilha para compreensão dos fatos.
Depois de dizer que “nós” (supostamente o povo ou o Brasil) temos uma “tendência a caminhar para o autoritarismo”, o presidente declarou: “Aqui [em Itu, em 15/11/17] nós inauguramos uma fórmula [a Proclamação da República] que a rigor deveria impedir os movimentos centralizadores que se deram no histórico que eu fiz [ele acabara de historiar os movimentos autoritários, desde a instituição da República no Brasil até o golpe militar de 1964]. O ideal seria que nunca tivéssemos essa centralização, autoritarismo em certos momentos que houve no passado.”
Esse discurso diz menos sobre a história do Brasil e muito mais sobre o próprio Temer e o grupo que está no poder. Na realidade, Temer lidera um movimento centralizador no Brasil atual e é neste cenário que entra essa articulação em prol da mudança do sistema de governo a despeito de o povo — o “nós” da frase do discurso presidencial — já ter rechaçado a mudança em dois plebiscitos, em 1963 e em 1993.
No livro Getúlio 1882–1930 — Dos anos de formação à conquista do poder,o escritor Lira Neto, afirmou que para Getúlio Vargas, “os parlamentares eram ‘anárquicos’ por natureza e, por isso mesmo, incapazes de responder pelos rumos de um país”. Apesar do ataque de Getúlio ao parlamentarismo ter sido em outro contexto (na época ele já defendia um governo “produto de um só cérebro”, o que fez durante a ditadura do Estado Novo, a partir de 1937), parece não ser de todo equivocada essa visão da natureza “anárquica” do Parlamento brasileiro.
“A origem dos problemas [do Brasil] está no mau funcionamento do sistema partidário”, diagnosticou com precisão o português Jorge Reis Novais, professor de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa e um dos maiores especialistas sobre o tema em seu País. “Enquanto aqui na Europa existe o que chamo de disciplina partidária, os partidos brasileiros não se distinguem entre si pela ideologia. É um sistema muito personalizado. Vota-se no candidato, não no partido. A tendência para a instabilidade e a ingovernabilidade é muito mais forte. Isso inviabiliza qualquer forma de governo”, disse à BBC.
O produto desse mau funcionamento é um Parlamento “anárquico”, a quem Temer e Gilmar Mendes querem entregar parte do naco de poder de um presidente da República. Então por que essa agenda de proveta? Porque Temer sabe da dificuldade de seu grupo continuar no poder. Articula essa mudança não por fidelidade ao País, a seu povo, de quem não teve votos para chegar ao Palácio do Planalto e de quem tampouco tem apoio para governar. Ele age em prol do chamado establishment político e econômico que apoiaram tanto o impeachment como seu governo.
Temer chegou ao Planalto pelos meios institucionais, mas isso não muda o fato de que ele não foi votado. Vice-presidente não recebe votos. Ninguém vota em vice, muito menos escolhe um candidato a presidente ou deixa de votar nele por conta de seu colega de chapa. Um vice não precisa se comprometer com propostas de governo. Temer encontra-se nesta posição, não tem compromisso com a população, que, aliás, rejeita seu governo. Ele tem compromisso com os parlamentares e com as elites políticas e econômicas que lhe dão sustentação. Ele governa para esse “eleitorado”. Aí chegamos às causas do semipresidencialismo.
Mesmo “anárquico”, fragmentado entre vários partidos, dominado por esquemas nada republicanos, e divorciado da sociedade, o Parlamento ganharia mais protagonismo na era pós-Temer com o semipresidencialsimo. As pequenas alterações aprovadas pela minirreforma eleitoral não permitirão grandes mudanças na composição do atual Congresso Nacional. E mesmo que o eleitor faça uma aposta histórica na eleição presidencial de 2018, o futuro presidente perderia poder para o mesmo Parlamento que está em profunda rota de colisão com a sociedade.
Está claro para este grupo que está no poder que ele consegue manter o controle do Parlamento mesmo depois de 2018, mas que dificilmente conseguiria eleger um presidente da República em eleição direta. Daí a invenção do semipresidencialismo de proveta.
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